quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A cura


Marta é uma mulher ímpar. Magra, alta, rancorosa, briguenta, adora uma confusão e um bom cigarro, principalmente após a janta. Passa a vida dedicando-se ao lar e ao marido. É uma excelente artesã. Crochê, tricô, costura. Sua principal característica é com certeza sua personalidade um tanto agressiva linguisticamente falando. Vive a falar palavrões e a dizer tudo o que pensa olho no olho.
Mora em um sobrado. Velho, grande, desgastado, rachado, sujo e desarrumado. A casa vive de reformas. Recentemente trocaram o telhado. Até que ficou bonitinho. Vermelho, bem vermelho! O piso está um horror! O pouco e ralo cimento que resistiu a ação do tempo desprega do solo e cria gigantescos buracos na sala de estar. A calçada está velha e desgastada assim como Marta. Quantas pessoas já pisaram ali? Quantas crianças já correram ali? Quantos gols já foram comemorados ali? Quantas fofocas já foram reveladas ali? Quantos bêbados já dormiram ali? – quando digo bêbados refiro-me ao marido de Marta que já bebeu, caiu e dormiu na calçada inúmeras vezes.
Marta gosta muito de futebol. Todos os domingos põe a velha e branca cadeira de plástico na calçada anciã, liga a televisão no máximo, pega uma bacia de pipoca, coloca algum líquido no copo e começa a gritar loucamente assistindo ao jogo de futebol. Grita, pula, xinga, mas não quebra a televisão, pois não vai ser fácil comprar uma nova.
Ela não tem muitas amigas. Para falar a verdade, pouquíssimas pessoas frequentam a sua casa. Sua única amiga e frequentadora assídua de sua casa é Fátima, uma mulher enigmática, de olhos dissimulados, cheia de problemas. As duas adoram conversar e pedir conselhos uma a outra. Quando Marta precisa viajar para o Rio de Janeiro ela é quem fica cuidando da casa e trazendo comida para o marido da amiga. Ela traz o almoço e a janta e está sempre presente na casa auxiliando o homem no que ele precisar. Doa-se ao marido de Marta, Deusinho, um curandeiro viciado em álcool, que adora branco e ama o final de semana, pois bebe até a madrugada. Durante a semana trabalha muito, seu terreiro é muito procurado. É corpo possuído, é inveja, é chifre, é maldição, é amor, é tudo! O local de trabalho do homem fica atrás do velho sobrado. É um terreiro cercado por altas e frondosas mangueiras, grande e de barro vermelho, um vermelho sangrento. Durante a noite acontecem as rodas. Gritos, gritos, gritos... palmas, cânticos, danças... oferendas, preto, sangue... Todos de branco, tudo a luz de velas.
Deusinho e Marta têm uma vida um pouco complicada. Vivem a brigar. Quando Deusinho bebe, ela nem espera ele acordar para a confusão começar. Palavras de baixo calão “voam”, chinelos voam, vasos voam e pratos também. A confusão só termina quando Deusinho vai para seu terreiro e finge não ouvir nada do que a mulher berra.
Marta sofre muito com o marido e sempre conta tudo para sua melhor amiga. Todavia, não busca a separação por medo de ficar sozinha e ninguém a querer mais, pois ela já está velha, 49 anos. Fátima sempre a ouve e aconselha mesmo com os inúmeros problemas que tem – foi devido a isso que conheceu Marta e Deusinho. Quando ela tinha brigado com o marido e parecia estar sofrendo uma maldição resolveu procurar um curandeiro o mais rápido possível para cuidar de sua vida. Assim, conheceu Deusinho e, diga se de passagem, adorou o que viu. A partir daí sempre que ela está com um problema, seja ele físico ou espiritual, ela procura Deusinho durante a noite – além de tratar dos espíritos ele também tem rezas e garrafadas para as dores que consomem a vivacidade dos seres humanos.
Em uma dessas noites escuras, libidinosas e neblinosas, Fátima mostrou sua real face. Tudo estava escuro e sombrio. Fátima estava como de costume possuída pelo desejo de possuir Deusinho. Como já era costume trocarem carícias durante a noite e nos períodos em que a amiga estava longe, ela usaria a desculpa de sempre – a insuportável dor que tinha em seu joelho, que a atrapalhava até para andar. Chegou viva, os olhos brilhavam, o cabelo de tão penteado seguia o ritmo do vento que o lambia, a pele hidratada e perfumada esperava ansiosamente pelo toque bruto e forte da mão calejada de Deusinho, a boca estupidamente vermelha e o vestido de tão apertado moldava uma falsa silhueta no corpo velho e gordo da mulher.
– Boa noite, amiga! Meu dia foi péssimo! Essa dor no meu joelho está cada vez pior, hoje estou movimentando muito pouco minha perna esquerda.
– Coitada! Sente que vou chamar Deusinho, ele vai rezar em seu joelho.
E assim saiu Marta, correu a procura de Deusinho. Achou-o se perfumando e trocando de roupa em seu terreiro.

– Fátima está na calçada esperando por ti para rezar naquele joelho doente dela.
– Mande ela entrar e diga que estarei esperando aqui no terreiro. Ah, não deixe ninguém aparecer aqui enquanto ela não sair, pois hoje tentarei incorporar um médico e tentarei curar de uma vez por todas o joelho de Fátima.
Marta saiu e foi dar o recado à amiga. Fátima, usando de todo o seu cinismo, pediu ajuda a Marta para chegar até o terreiro argumentando que a dor estava até impossibilitando-a de andar. Marta deixou os dois a sós e saiu, mas sem perceber deixou cair seu isqueiro quando voltava.
Assim que Marta saiu os dois começaram a se curar. Vorazmente Deusinho mordia Fátima e ela retribuía. O clima esquentou e os dois se curavam de prazer.
Marta acabara de jantar e como de costume tinha de fumar um cigarro. Aquele fumo envolvido por um pedaço de papel frágil acalmava-a. Pegou o cigarro, colocou a mão no primeiro bolso e não encontrou o isqueiro. Procurou em todos os outros e nada. Andou pela casa, conferiu no quarto, olhou na cozinha, mas nada encontrou. Lembrou-se então, que quando foi deixar a amiga no terreiro estava com o objeto no bolso. Como o vício é controlador ela não se conteve e foi buscar o objeto desrespeitando a ordem do marido. “– Eu vou bem caladinha para não atrapalhar e volto rapidinho.”
E ela foi.
Quando abriu a porta viu logo seu isqueiro brilhar. Agachou e pegou-o. Quando levantou a cabeça e já ia virar às costas dirigindo-se novamente à porta seus olhos ferveram. Ela viu o que nunca quisera ver. Deusinho satisfazia Fátima de um jeito que nunca satisfez Marta. A pobre mulher sentia-se um lixo, uma humana usada e acima de tudo traída. Não sabia o que fazer. Apenas saiu rapidamente e chorou até secarem as lágrimas. Sua raiva e espontaneidade de nada lhe valeram naquele momento. Ela ficou sem voz, sem ação e ficou com mais medo ainda de perder seu único e miserável marido, aquele que por mais que não a consumisse por completo deitava sempre com ela.
Chorou, mas optou por nada fazer. Aguardou os dois saírem, despediu-se da amiga e foi dormir junta a Deusinho. Dormiu e sonhou com o dia em que Deusinho iria encontrar a cura para o joelho da amiga – provavelmente, no dia em que ele enjoar de Fátima.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Lembranças



Escute enquanto lê:


Lembra de quando corríamos juntos de porta em porta? De quando assustávamos os vizinhos mais velhos? De quando nos escondíamos em nossa casinha da árvore? De quando você me olhava com um sorrisinho no canto da boca, apertava minha bochecha e eu retribuía acariciando seu cabelo vivamente brilhoso? Éramos duas crianças ímpares. Dois “pestinhas” como muitos diziam. Duas almas que se completavam. Doce e salgado. Frio e calor. Razão e emoção. Alegria e tristeza. Choro e sorriso.
Lembra do dia que doamos nossos brinquedos – o que sobrou deles?  Como crescemos do dia para a noite!
Lembra da minha primeira carteira? De seu primeiro salto? De quando você quase caiu na calçada tentando se equilibrar nele? Da penugem que era minha primeira barba? Da primeira vez que saímos sozinhos? De nossa primeira noitada? De nosso primeiro beijo, nosso primeiro “eu te amo”, nosso namoro? De nossa primeira vez? De nossas juras? De nosso noivado? Que dia incrível! O começo da materialização de um sentimento tão puro.
Lembra do dia mais importante de nossas vidas? De como eu estava nervoso e como você estava linda? De como eu segurava as lágrimas? De como você sorria e soltava as lágrimas? De nosso sonoro sim?
Lembra de nossa casa? De como você organizou tudo do seu jeitinho? De todo o trabalho que tive? Do sofá aconchegante no qual assistimos a diversos filmes? De nossas conquistas, nosso trabalho, nossas contas, nossa vida de adulto?
Lembra daquela tarde? Da notícia? De como eu era o homem mais feliz do mundo? De como eu mimei você durante os nove meses? De como foi lindo o nascimento dela? De como passamos noites acordados?
Lembra de como envelhecemos? De como nos preocupamos com o trabalho? De como pouco nos falávamos? De como nos cansamos de tudo? De como a rotina estava um inferno?
Lembra de nossa primeira briga? De como você chorou? Eu chorei escondido. Chorei muito. De como depois da primeira outras vieram e multiplicaram-se? Como esquecer, não é?
Lembra da mala, do último olhar, da buzina? Eu estava saindo. Foi difícil, mas foi o melhor.
Lembra? Você ainda lembra? Você ainda lembra de mim? Lembra de nós?

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Sobre saudade


Coisinha, estou com saudade de você. É como se um pedaço meu estivesse em um lugar distante. Estou com saudade de seu cabelo, de seu olhar, de seu sorriso, de sua pele, de seu jeito. Até de você mandando em mim, acredita? Queria te ter por perto. Queria poder te abraçar. Queria desabafar. Queria seus olhos para eu mergulhar bem fundo. Queria vê-los refletindo minha face. Queria uma alma para me escutar. Queria te tocar, falar com gesto o quão importante você é para mim. Essa saudade maltrata. Não sei qual o remédio, se é que tem. Talvez, o único remédio seja você, seja te encontrar. No entanto, enquanto não corro para te apertar, consolo-me com as palavras. Elas ajudam! Dizem o que uma boca tímida não ousa pronunciar. Transferem para o papel os tão escondidos e pusilânimes sentimentos de meu coração.