quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A descoberta


Eles se conheceram na infância. Moravam próximos e brincavam juntos todas as tardes. Matilde era uma menina linda, adorava usar vestidinhos rosa e não saia de casa sem seu laço vermelho no cabelo. Joaquim, carinhosamente apelidado por Matilde de Joca, era muito sapeca, andava na rua e só tomava banho à noite. Cresceram juntos, choraram juntos, descobriram o mundo, suas bondades e maldades juntos.
Certo dia, já crescidos, com seus treze aninhos, confessaram algo enquanto brincavam:
– Eu quero falar uma coisa – disse Matilde.
– Há dias que quero falar uma coisa para você também – falou Joca.
– Pois diga logo – desatou Matilde.
– Não, quero escutar você primeiro – disparou Joca.
– Eu quero ouvir logo você! Me deixou curiosa – rebateu ela.
– Não quero falar logo! – disse ele quase irritado.
– Dá para parar com essa besteira e falar logo isso? Se você não falar, eu não falarei – gritou Matilde.
Joaquim ficou meio sem jeito, mas percebeu que não lhe restara alternativa a não ser falar logo para ela o que sentia. Disse timidamente:
– Matilde, conheço você há muito tempo, gosto muito de você. Só que de uns dias para cá gosto ainda mais de você. Não sei como te explicar, mas é um gostar diferente de quando gostava de você quando tínhamos nossos quatro anos. Gosto querendo te proteger. Gosto querendo te abraçar. Gosto querendo cuidar de você. Gosto guardando seu perfume. Gosto fazendo você sorrir. Gosto de ti mais que tudo.
Matilde corou e suas bochechas estavam da cor de seu laço. Sempre se mostrara menos tímida e mais resolvida que Joca, mas naquele momento não sabia o que fazer. Olhou nos olhos dele, colocou os cabelos atrás das orelhas, sorriu primeiro com os olhos, depois com a boca e falou:
– Estou sem palavras. Acredita que o que tinha para te falar era sobre isso? Também estou gostando diferente de você. Gosto de te ver sendo bobo. Gosto de tuas tentativas de me agradar. Gosto do teu jeito. Gosto do jeito que me olha.
Joaquim ficou vermelho, bem vermelho, quase escarlate, eu diria. Estava tão feliz que parecia ter ganhado asas. Era leve. O corpo não pesava. Não sentia a respiração. Ninguém mais existia a não ser eles dois. O mundo era alegre. Ele estava bobo. Voava, voava, até que...
– Você está bem, Joca? – perguntou Matilde.
– Oh, estou. Está tudo bem, tudo bem, tudo mesmo.
Joaquim recuperou o fôlego, continuou sorrindo e acrescentou:
– O que você acabou de falar é mesmo verdade?
Matilde sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.
Joaquim retribuiu o sorriso, olhou nos olhos dela, aproximou sua face até que um pudesse sentir a respiração do outro, fechou os olhos e encostou os lábios nos dela. Ela aceitou os lábios dele prontamente. Trocaram um selinho. Aquilo foi indescritível para os dois.
Depois da descoberta e do selinho, os dois, felizes, muito felizes, se despediram e foram para casa, pois já era tarde. A noite já vinha chegando.
No dia seguinte brincaram novamente, beijaram-se novamente e gostaram-se novamente.
No ano seguinte brincarem novamente, beijaram-se novamente e gostaram-se novamente.
Nos seis anos seguintes cresceram mais, beijaram-se mais, descobriram-se mais e começaram a namorar sério com o consentimento da família.
Nos dezoitos anos seguintes amaram-se, casaram-se, tiveram dois filhos, um menino e uma menina, passaram por sérias dificuldades financeiras, perderam os pais, mas não deixaram de amar. O amor curou. O amor resolveu. O amor eternizou momentos, apaziguou ânimos, acalmou almas e solidificou a relação.
Nos dias de hoje vivem velhinhos, dividem a bengala e o mingau. Sentam-se na calçada e pacientemente veem a vida passar. Adoram mimar os netos e servem de exemplo para todos de que o amor é possível. Provam que por mais que o mundo gire, as mentalidades mudem, as atitudes tornem-se traiçoeiras, as pessoas tornem-se menos confiáveis, o amor ainda é a solução. Ele quebra e repara. Destrói e constrói. Envelhece e rejuvenesce. Finda e continua.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Um feliz aniversário


Estava sentado naquela dura cadeira da recepção do hospital em um domingo angustiante aguardando notícias de meu amiguinho Gabriel, que se encontrava na U. T. I. De repente, uma ambulância chegou. Aquilo roubou temporariamente meu olhar e minha atenção. Dela saiu em uma maca uma linda menininha da mesma faixa etária que Gabriel. Loirinha e pálida deveria ter vindo de uma festa de aniversário direto para o hospital – um chapéu colorido em formato de cone e um vermelho nariz de palhaço pendurados em sua mão justificam minha hipótese. Atrás dos enfermeiros corria uma mulher desmanchando-se em lágrimas que não pôde ir para o centro cirúrgico e teve de ficar na recepção. Sentou-se ao meu lado e pôs-se a chorar. Olhei-a timidamente e ofereci um copo d’água. Ela aceitou e quando deu o último gole resolvi interagir:
– O que aconteceu? Aquela é sua filha?
– Sim, aquela é minha única filha. Era o aniversário dela... minha Isabela completava seus doze anos até que... até que... – respirou fundo e novamente seu rosto cobria-se de lágrimas – ela passou mal, muito mal.
– E ela já tem algum problema?
– Sim, ela tem insuficiência cardíaca. Ela já teve algumas crises, mas a de hoje nem se compara as outras. A de hoje foi muito forte mesmo! Os médicos já haviam me dito que a solução para o problema dela seria o transplante de um novo coração, mas é muito difícil. Ela é a primeira da fila para o caso de aparecer um transplante, mas eu não conto muito com isso. É muito difícil encontrar alguém que seja um doador no Brasil, um país repleto de seres humanos egoístas, mentirosos e hipócritas.
Concordei com sua fala e continuamos, pois, sentados ali. Rezando e sem receber nenhuma informação. Cabisbaixos, tentando alimentar os melhores pensamentos, mas assumo que estava difícil. Os ponteiros do relógio giravam e com eles meu estômago girava junto. Unhas? Eu não tinha mais.
Minha aflição diminuiu quando vi o médico caminhar em minha direção. A mãe de Gabriel, D. Zélia, que estava algumas cadeiras distantes de mim e mais aflita e desesperada, veio correndo. O médico chegou. Sua cara não era animadora.
– Vocês estão acompanhando o Gabriel?
– Sim! – respondemos uníssonos.
– Nós fizemos vários procedimentos, tentamos de tudo para reanimá-lo, mas infelizmente Gabriel teve morte cerebral.
O médico nem concluiu sua fala e D. Zélia caiu de joelhos gritando aos prantos. Pedia para que trouxessem seu filho de volta. Eu? Meu rosto se desmanchava em lágrimas e eu nem havia me dado conta. Tentava limpar e ser forte, mas a dor era grande demais. As lágrimas descontroladamente rolavam, mas tive de me conter para ouvir o que o médico ainda ia falar. Ele chamou a mãe de Isabela para junto de nós e disse:
– Seu filho se foi, D. Zélia, mas não fique triste, pois ele evitou que tivéssemos duas crianças mortas em uma única noite. Graças ao seu ato de tornar todos os membros de sua família doadores de órgãos, Gabriel salvou a vida de Isabela doando seu coraçãozinho para ela – nesse momento o médico apoiou a mão no ombro da mãe de Isabela e soltou um sorriso comportado.
D. Zélia recompôs-se e foi fortemente abraçada pela mulher que teve a filha salva por Gabriel. Limpando suas lágrimas ela disse:
– Eu posso apenas imaginar a dor que você deve estar sentindo, mas quero que saiba que eu e minha filha seremos eternamente gratas a você e ao seu filho. Ele, um desconhecido, que nem convidado para o aniversário dela fora, deu o melhor presente de todos: a vida.
D. Zélia confirmou com a cabeça e veio me abraçar. Nesse momento, já controlado e conformado, sussurrei ao seu ouvido: “não fique triste. Ele pode ter falecido, mas seu coração ainda pulsa, e com certeza, pulsará muito mais. Pulsará sonhos, alegrias, conquistas, enfim, uma nova vida.”
Ela concordou comigo, limpou as lágrimas e juntos sentamos, bebemos água e ficamos esperando para vermos como estava Isabela. Particularmente, estava doido para ver aquela face pura sorrir cheia de vida e trazer um pouco de alegria para a segunda-feira que se aproximava.